domingo, 26 de outubro de 2008

«As mãos e o espírito» de Óscar Lopes

«As mãos e o espírito» de Óscar Lopes é um texto admirável editado para a eternidade em 1958 e reeditado pela Campo das Letras, no ano passado, no ensejo das celebrações dos 90 anos do professor, historiador da Literatura, ensaísta, crítico, homem livre e Mestre de todos nós. O texto é uma lição de sapiência, segundo António Borges Coelho, no prefácio do pequeno e arrebatador livro, concebido pela equipa editorial que já nos habituou a produtos de qualidade e estética superiores.

São 75 páginas com o texto que conta, problematizando, a história da criação do homem no seu diálogo entre a mão fazedora e o espírito que a anima, juntos na invenção do fogo que abriria o caminho da civilização humana. A acompanhar esta Lição, surgem outras mãos incendiadas pelo espírito, nas ilustrações originais de Ângelo de Sousa, Armando Alves, Jorge Pinheiro e José Rodrigues.

«A mão e o cérebro, a acção e o pensamento, a prática e a teoria estão indissoluvelmente ligados desde que o homem é homem. Mas a mão não se limita a executar ordens; é também órgão fundamental de investigações», escreve Óscar Lopes. O diálogo de uma vida entre a mão e o espírito teria visibilidade nas duas distinções que recebeu do Estado português: em 1988 era agraciado com a Ordem da Instrução Pública num reconhecimento à mão que nos ensina a nossa Cultura e, há apenas dois anos, era condecorado, por Cavaco Silva, com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, o espírito que sempre o animou e que lhe valeu a perseguição pela PIDE.

Militante comunista, Óscar Lopes nunca escondeu a sua matriz marxista, o que não o impediu de encetar os múltiplos diálogos, pois a procura do saber sempre foi o seu motor. Co-autor, com António José Saraiva, da omnipresente História da Literatura Portuguesa, que tem sido a bíblia literária de gerações de estudantes, o autor de Modo de Ler (1969), Os Sinais e os Sentidos (1986) e, mais recentemente, A Busca de Sentido (1995), entre outros, tem-nos mostrado ao longo de décadas que o saber tem muitas formas, que cabe a cada um de nós entrar com os dedos no fundo da matéria, e viver a aventura de o perseguir.

«Um homem nunca está só»

Escreve Óscar Lopes: «Quem fala nunca está absolutamente só, visto que pensa – e pensar, à maneira humana pelo menos, é atingir o mundo material através de um mundo de sinais sensoriais e verbais de que os nossos semelhantes comparticipam. Por cada pequeno gesto das suas mãos, o ser humano executa uma incontável quantidade de gestos nervosos, na massa cinzenta do cérebro, que maravilhosamente, se correspondem, de homem para homem. Um homem nunca está só. Tem sempre consigo a sua educação, a sua experiência de vida conivente, a fala interior educada nos hábitos da fala exterior

No longo processo de humanização, Óscar Lopes refere-nos momentos de desumanização, resultado da desarticulação entre o cérebro e as mãos. Sobre os seus tempos, mas com a actualidade que a seguir se vê, escreve: «ninguém hoje contesta, julgo eu, que estamos perante uma nova crise nas relações entre o cérebro e a mão do homem. Mais uma vez, a mão cresceu e qualificou-se de tal modo, que o espírito humano, ou pelo menos certas formas do espírito humano, perderam o controlo sobre elas. (…) Portanto, se alguma coisa está errada no mundo que o homem fez dentro do mundo, a responsabilidade é do espírito humano, quero dizer, do cérebro humano; do sistema prevalecente do controlo supremo sobre a vida humana. O cérebro deve queixar-se de si, e não das mãos que tão brilhantemente aumentou e qualificou. O cérebro social é que tem de ser refeito.».

Quando este «As mãos e o espírito» foi impresso, diz António Borges Coelho, «vivíamos sob a opressão interna e o céu de chumbo do chamado equilíbrio nuclear», e um ano antes, Óscar Lopes viu-se enredado no exangue julgamento do Porto, o processo do MUD Juvenil. «No entanto, no texto que ireis ler, não há amargura ou desalento, mas a serenidade de uma consciência aberta para a entrega ao mundo», acrescenta Borges Coelho.

A serenidade de quem sempre ensinou e sempre se dispôs a aprender. A serenidade de um espírito superior que em diálogo com as suas mãos esculpiu a herança de todos nós e o maior património deste país: as letras portuguesas.
© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

«O Lavagante» de José Cardoso Pires - Pura filigrana literária

Dez anos depois da sua morte, a completarem-se no dia 26 de Outubro, José Cardoso Pires regressou às livrarias para nos mostrar o quanto nos faz falta. Lavagante - encontro desabitado é um texto inédito do nosso escritor de sempre e é com ele que Nelson de Matos, que foi editor de Cardoso Pires durante quase 30 anos, iniciou a actividade da sua nova editora. Uma homenagem ao amigo, disse o editor; uma homenagem à saudade dos leitores, acrescento eu.

A surpresa deste texto póstumo, lançado no início do ano, valeu-lhe esgotar, num ápice, a sua primeira edição de 3000 exemplares. A surpresa continua no interior, pois foi a ela que Cardoso Pires nos habituou: o ardil narrativo, o desenho das personagens, o carácter impressivo dos ambientes e a prosa de pura filigrana avassalam o leitor enredando-o nas breves, mas imortais páginas desta preciosa fábula que retrata o Portugal medroso, censurado e asfixiado dos anos sessenta. Sem dúvida, o acontecimento editorial do ano.

José Augusto Neves Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925 em São João do Peso, Vila de Rei, Castelo Branco. No dia 26 de Outubro de 1998, em Lisboa, o escritor de O Delfim e de De Profundis, Valsa Lenta, não conseguiu vencer a senhora da gadanha e, após um acidente vascular cerebral era-lhe decretada a morte cerebral. Considerado um dos maiores escritores portugueses do século XX, Cardoso Pires deixou-nos uma obra extraordinária em romances, contos e dramaturgia.

Segundo as Edições Nélson de Matos, o texto foi editado, numa versão reduzida, em 1963 na revista O Tempo e o Modo com o título "Um lavagante e outros exemplares", com a menção de que se tratava de um capítulo do próximo romance de Cardoso Pires, e terá sido concluído antes da edição de O Delfim (1968). O texto agora publicado será a mais completa das três versões dactilografadas.

Lavagante, Safio e «outros bichos»

A acção inicia-se no Lanterna, «o melhor bar de praia» onde estão o narrador, um barman e um jornalista «em destroços agarrado ao balcão do bar, da geração reformada que não conheceu a paz nem a guerra», a geração 44-45, «atormentado» e de «sonhos frustrados», sentindo a culpa da mão viciada que «escreve com medo»:
«Viciámo-nos. Agora temos a Censura a escrever por nós. E amanhã? Quem sabe escrever amanhã, quando a Censura acabar?».

A chegada de um casal, saído de um Mercedes 190 – a «mulher cabra» e um fascista, o «engenheiro-sapo» – introduz a história de Daniel – jovem médico oposicionista do regime – e Cecília – jovem estudante de Arquitectura que o traiu entregando-o à PIDE, o que valeu ao jovem 52 dias de prisão no Aljube, sem perguntas, simplesmente para «dar-lhe um golpe no orgulho». É também este o ensejo para a metáfora do Lavagante, que desata a reflexão sobre a autofagia:
«o lavagante é principalmente um animal de tenebrosa memória, paciente e obstinado, e terrível nos seus desígnios. Contei-lhe como ele serve o safio que está nas tocas submersas levando-lhe comida a todas as horas, e como a sua existência anda presa a essa serpente estúpida de grandes sonos, vendo-a engordar, engordar, até saber que a tem bloqueada, incapaz de sair do buraco porque o corpo cresceu de mais, enovelou-se, e não cabe na abertura por onde podia libertar-se. “‘Nesse momento, fica sabendo, o lavagante servil aparece à boca da toca do safio mas já não traz comida. Vem de garras afiadas devorar o grande prisioneiro que alimentou durante tanto tempo.”».

Extraordinariamente construída, Cecília é o lavagante, calculista, «fria e soberana», de «corpo vivaz», «cabra mil vezes cabra», diz o jornalista «em desespero», amigo de Daniel.Mas se o lavagante é Cecília, também Daniel «executara as diversas fases dum jogo perigoso»: «o teu amigo quis catequizar a rapariga e o tiro saiu-lhe pela culatra. No fim de contas, é a velha costela de Pigmaleao que todos nós temos… (…) Talvez fosse uma espécie superior de lavagante…Quem sabe?Se formos a ver bem, talvez o Pigmaleão tenha qualquer coisa de lavagante. Ele também aperfeiçoava a presa, não é verdade? Também a acomodava aos seus desejos. ».

Por outro lado, a Cecília arrependida origina uma troca de papéis: o mesmo Sapo que o terá prendido, pela mão de Galos Velhos, operacionais da PIDE, o terá libertado por interferência de Cecília: «”O Safio”, digo de mim para mim. “Neste caso foi o safio que se libertou pela mão do lavagante. Questão de táctica, pura questão de táctica. Para ganhar uma presa é necessário às vezes soltar outra. Todos os bichos sabem isso, e o lavagante também. Se sabe!”».

Nota:

O CCB assinala, no dia 26 de Outubro, os dez anos da morte do escritor, com o programa titulado José Cardoso Pires, de Mão Pensada, com entrada livre. Nas actividades contam-se leituras de excertos da sua obra, entre as 14:30 e as 16:15, na sala Almada Negreiros, com abertura de António Mega Ferreira, presidente do conselho de administração do CCB, e as participações de Inês Pedrosa, José Eduardo Agualusa, Mário de Carvalho e Lídia Jorge; uma conferência intitulada Memória e Auto-Ficção, às 17:15, proferida por João Lobo Antunes, e às 18:30 a projecção do filme "O Delfim", realizado por Fernando Lopes em 2002, com argumento de Vasco Pulido Valente e interpretação de Rogério Samora e Alexandra Lencastre.
No átrio da sala Almada Negreiros, estará ainda patente uma exposição com as ilustrações que João Abel Manta fez para a sátira de José Cardoso Pires "O Dinossauro Excelentíssimo" (1972).

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Aniversário do poeta António Ramos Rosa

É um dos maiores poetas vivos da Literatura Portuguesa. Faz poesia há meio século. Publicou quase tantos livros como o número da sua idade. Falamos de António Ramos Rosa, nascido em Faro em 17 de Outubro de 1924, mas radicado em Lisboa desde os anos 60, altura em que fez da palavra a sua missão e da poesia o seu compromisso. A sua bibliografia é vastíssima: entre poesia individual e em parceria com outros autores, contam-se também traduções, críticas e ensaios. Entre várias distinções, recebeu em 1988, o Prémio Fernando Pessoa.

Estreou-se em 1958 com O Grito Claro, um grito lúcido de liberdade e irreverência contra o agrilhoamento da ditadura; denunciava um tempo de opressão - "O tempo duro / com unhas de pedra", "o tempo dos sonhos / sem coragem para poder vivê-los" - e um tempo de trevas labiríntico - "A noite trocou-me os sonhos e as mãos / dispersou-me os amigos / tenho o coração confundido e a rua é estreita".
No poema Boi da Paciência, numa alusão ao sonho amordaçado, levanta uma questão, não de retórica, pois evidenciava-se a resposta: " Todos os dias cumprido com as leis do diabo / todos os dias metido pelos olhos adentro / numa evidência que nos cega / até quando?". A sua poesia parecia, assim, querer gritar outras razões, sair de um "espartilho", e atingir todo o real: " Não posso adiar o amor para outro século / não posso / ainda que o grito sufoque na garganta"./."Não posso adiar o coração" e, ainda, "As paisagens continuam a existir. / As paisagens são suaves. / Continuam também a existir / outras coisas que dão matéria para poemas.".

A viragem anunciada concretizava-se nos anos 60, com uma linguagem poética menos codificada e mais despojada, "sem pintura / mas bela e natural", onde abundam a luz, a vida, a liberdade - o sol, a lâmpada, a água, o vento - numa fusão de encontro à felicidade, ao amor e à perfeição: "Se nos teus olhos os olhos se me perdessem / nova água, sol e vento se fariam / através de um só corpo de alegria."; "Todas as palavras se iluminam / ao lume certo do corpo que se despe, / todas as palavras ficam nuas / na tua sombra ardente.". Definitivamente, as palavras encontravam o seu caminho de penetrar o mundo para o habitar, e a escrita aparece como um desejo de "tornar habitável o deserto" da alma, da existência - "Escrevo para não viver sem espaço, / para que o corpo não morra na sombra fria"; " Caminho um caminho de palavras / (porque me deram o sol / e por esse caminho me ligo ao sol / e pelo sol me ligo a mim". Ensina-nos como pela palavra a reconciliação com o mundo é possível: "Eu tudo sei e assim descubro / a luz, a água, o pão, o corpo: / habito a terra, habito mais, / contra mim mesmo descanso e nasço".

Considerado o "eterno aprendiz", ou o "aprendiz secreto" que aprende no silêncio das coisas, aquele por quem "O vento passa como uma pá", e que vive "devorado de espaço, aberto à luz, como um tronco a que uma cabeça assoma voltada ao horizonte", Ramos Rosa procurou sempre depurar as palavras e encontrar novas possibilidades no poema. Nos anos 80, a poesia ramos-rosiana atinge um novo fulgor nas metáforas e na musicalidade e o seu "corpus" reflexivo ganha novo alento.

Em O Volante Verde (1986), um "volante" poético, um voo de pujança, dá-nos uma lição de felicidade e esperança: "Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou. / Sou renovado pelo espaço, nasço num espaço verde. / O que eu amo está perto entre a terra e o ar."; " Algo nos cria e nos liberta dos absurdos cercos. / Despertámos para tocar a boca esquecida pela noite. / Somos a folhagem e o espaço, somos uma garganta fresca. /As sombras aquecem-nos e as estrelas visitam-nos. / O meu corpo é de argila estou vivo e aceito o dia."

Considerado um poeta "da luz", é também um poeta da lucidez porquanto assume as ambivalências da vida, que na existência existe o "irresolúvel", a luz e a sombra, o vazio e a plenitude, o "Sim" e o "Não".
Um dos grandes encantamentos da sua poesia está no "olhar original", inocente, sem uma pré reflexão, com que olha as coisas, o que lhe permite o júbilo constante da descoberta. Esta postura fê-lo aproximar-se da filosofia oriental do Budismo Zen. Dá-nos o exemplo de um momento de alegria quando, um dia, observou "pela primeira vez" uma formiga no seu percurso sobra a folha branca, na qual escrevia.
Outro dos seus grandes ensinamentos é levar a ouvir-nos o que o silêncio, na sua textura secreta, nos pode dizer. Os silêncios falam e podemos ouvi-los na sua linguagem poética.

Ouvir a versão radiofónica deste texto, com locução de Luís Gaspar.

nota: elaborei este texto, há quatro anos, como celebração dos 80 anos do poeta António Ramos Rosa. Foi editado no site TriploV

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Centenário de Adolfo Casais Monteiro

Pouco se fala dele, mas deixou marcas raras e iniludíveis na cultura portuguesa. Salazar proibiu qualquer referência ao seu nome e parece que a influência do ditador agiu sobre as memórias. Adolfo Casais Monteiro nasceu no Porto a 4 de Julho de 1908 e faleceu longe da pátria, no Brasil, a 24 de Julho de 1972, para onde emigrou em 1954 e donde jamais voltou. Poeta e ensaísta de excelência, foi uma das vozes do Modernismo português, fez parte da direcção da Águia (1929), da Presença (1931) e do Mundo Literário (1946). Juntamente com os amigos Fernando Pessoa, José Régio, João Gaspar Simões, Casais Monteiro foi nome grande das letras portuguesas do século XX.

Nesta homenagem a Adolfo Casais Monteiro, relembro alguns dos seus poemas impuros que se tornam puros, porque, como ele disse, são barro humano. Barro cristalino, de tempos incertos, em constante interpelação da vida: «Não canses…/sabes que a vida /é feita de retalhos: /riso e lágrimas de mistura…/Seu preço /talvez esteja nisso mesmo».

Em notas para o leitor, mon semblable, mon frére, como assim o designou, no prefácio à edição de Versos, em 1944, Adolfo Casais Monteiro fala da dificuldade de se criar em isolamento, não só dele, mas do grupo Presença contra o «mundo inteiro». Refere-se à animosidade com que os seus versos são recebidos, embora constate que já há «quem os entenda». Destrinçando a sua actividade de Ensaísta e Poeta, e respondendo assim aos que o acusam de «ser um» quando escreve versos e «outro» quando escreve ensaios ou críticas, Casais Monteiro: «o ensaísta está voltado para o mundo: pretende fazer compreender, ou fazer amar. O poeta (…) está sozinho. (…) Os meus poemas nasceram quase sempre dum estado de insatisfação, de descontentamento, de desequilíbrio. São quase todos a voz da sombra, da melancolia, do desespero, da ansiedade; ou então, de estados ou momentos de exaltação positiva».

E os seus poemas desnudam-no; neles encontra-se a explicação do ser poeta, menino e velho, exaltado e desesperado, sempre deslumbrado e tendo no verso o pão:

Poeta: uma criança em face do papel. /Poema: os jogos inocentes, /invenções de menino aborrecido e só. /A pena joga com palavras ocas, /atira-as ao ar a ver se ganha o jogo; /os dados caem: são o poema. Ganhou.

Um poeta: um velho em frente da desgraça. /Um pobre mutilado, /Deram-lhe uma alma, mas /tudo o mais lhe tiraram: para quê? /Poeta: o que canta para sofrer; /O que sofre para cantar; /e afinal não se sabe se foi o ovo que nasceu da galinha /ou a galinha que nasceu do ovo.

A Palavra Impossível do Exílio

Vítor Hugo disse que «O exílio é uma espécie de longa insónia». Perseguido por Salazar, Casais Monteiro revela a Confusão (livro de 1929) do tempo fragmentário que encontra na palavra a voz do desencanto: «Pelos caminhos incertos /dum país de sonho e de bruma /vou desvairando à procura /de qualquer coisa que sinto /fugir-me por entre os dedos. /Não sei bem o que persigo / – e que importa isso à vida? – /o essencial é apenas /perseguir alguma coisa /para não ser absurdo /o tanto tempo perdido /a divagar neste mundo».

Em Sempre e sem fim (1937) diz-se o Fio da Meada da vida dobadoira: «à roda à roda sem parar /eu o fio da meada /cujo fim era dar voltas /o fio que se enrolava /e que assim a andar a andar /sem descanso nem sossego /voltava sempre a passar /a passar onde passara. /Mas o fio da meada /ficou preso nos teus dedos /agora desapareceu /o ritmo da dobadoira /e tem apenas um jeito: /enrolar-se no teu corpo /envolver a tua vida /e sem fim sem fim sem fim /enredar-te em suas voltas…».

Preso várias vezes, manifesta a sua revolta em «Canto da Nossa Agonia» (1942) e «Europa» (1946). Neste último, o autor cujos «dedos /quase por hábito» se estendem «para o papel, /num desejo /de confessar sei lá o quê» mostra, no vibrante vocativo «Europa, ó mundo a criar!», a conjuntura e o estertor da sua existência, em busca, todavia, da cumplicidade do leitor:

«Deixai-me chorar – e chorai! /As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, / de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição, /e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama, /por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio, /por um segundo seremos os mortos e os torturados, /os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados, /seremos a terra podre de tanto cadáver, /seremos o sangue das árvores, /o ventre doloroso das casas saqueadas, /sim, por um momento seremos a dor de tudo isto».

Em 1954, ano em que parte para o exílio do Brasil, escreve «Voo sem pássaro dentro e dá conta das portas que o fecham e da negação da voz: «Abram!» disse a voz. /«queres sair ou entrar?» ouviu. /A voz ficou suspensa. Sair ou entrar? /«Sei só que há portas…»disse. /«Sim, portas fechadas para todos os lados; /se entrares, ficas fechado do lado de dentro, /se saíres ficas fechado do lado de fora. Escolhe!» /Mas a voz nunca mais.».

A alquimia do vivido e a procura da luz…

António Ramos Rosa refere que apesar da poética de Casais Monteiro ser traduzida «por palavras como bruma, destroços, incertos, vão, gelado, etc.», o «prato da balança» pende para aspectos menos negativos como o «apelo à luz, à vida (…)». Como efeito, sendo esta uma poesia com «uma nova dimensão para o vivido», como disse Óscar Lopes, as perdas parecem transmutar-se para o amor, para o «que não se tem» e, por isso mesmo «se sabe já desejar». Em 1961 Casais Monteiro edita o livro Estrangeiro Definitivo e a mão que esculpe os versos de abandono deixa-se iluminar pela possibilidade do amor:

Quem saberá ler o futuro /nos olhos transparentes do amor? /Quem saberá arder até ao fundo /na chama última do amor? /Quem saberá perder o nada e ganhar tudo /por amor?

Toda a gente é um exército de salvação! /Vêm com a sua charanga salvar-nos de nós próprios, /amigos, amantes, parentes, para não falar nas esposas. /Toda a gente nos quer dar esmola. /Só ninguém nos quer nus, /só ninguém percebe que uma só coisa nos podem dar realmente, /é olharem para a nossa alma nua e dizer: /- Está bem, assim seja. /Então seria o amor.

Casais Monteiro diz que «Noite aberta aos quatro ventos», livro com poemas de 1943 a 1959, é a expressão fiel de si próprio, acrescentando: «reparo que a palavra Aberta se encontra no seu título com mais sentido do que poderia supor quando o adoptei». Desse livro reproduzo o poema fricativo do cisma do vento, cunho de toda a sua existência:

Vem Vento, Varre

Vem vento, varre
sonhos e mortos.
Vem vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só covardia.
Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.
Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.
Vem vento, varre!

© Teresa Sá Couto

domingo, 5 de outubro de 2008

«O Romper das Ondas» dá Prémio Literário a Rui Herbon

O Romper das Ondas é o título do romance original de Rui Herbon a vir agora para a ribalta. Foi com ele que o escritor arrecadou mais um Prémio Literário, desta vez, o Prémio Literário da Cidade de Almada 2008, entregue na passada sexta-feira, dia 3 de Outubro, no Fórum Municipal Romeu Correia Autor, daquela cidade (à esquerda, fotografia de Rui Herbon na contracapa do seu primeiro romance, o genial «Voar Como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (um filme português)».

Com uma obra carismática, de escrita musculada, inquiridora e, por isso, desafiadora, que sacode, incomodamente, os nervos mais esconsos da alma humana, Rui Herbon é uma marca de originalidade na Literatura Portuguesa, e cuja consequência é, claro está, a controvérsia, trazida sempre a lume nestas ocasiões:

na cerimónia de entrega do prémio, a escritora Lídia Jorge justificou a decisão do júri, salientando que a mesma não foi unânime, porque o livro pode suscitar controvérsia, uma vez que tem uma construção muito particular - navegando muitas vezes no sonho e na realidade transfigurada -, mais psicológica do que narrativa, chegando mesmo uma personagem a afirmar "não cheguei a uma cidade, mas a um estado mental".

Acrescentou ainda que se trata de um romance verdadeiramente contemporâneo, abordando o nomadismo e a incomunicabilidade dos seres humanos, e culto, cheio de referências literárias. Concluiu realçando a qualidade da escrita, onde não há verso, mas existe uma transfiguração da realidade em poesia.

Afinal, estas características nomeadas por Lídia Jorge são as que reconhecemos em todos os títulos de Rui Herbon. São as impressões digitais de uma escrita construída num espaço só seu, pelo que é crível que Rui Herbon faça correr muita tinta num futuro próximo e desencadeie leituras apaixonadas; é crível, pois considero que este pequeno país tem leitores exigentes e ávidos de leituras diferentes das que pululam nas prateleiras acessíveis do nosso mercado do livro.

Recordo que Rui Herbon tem publicados três romances: «Voar como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (Um Filme Português)», Prémio Eixo-Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa 2002, «Absinto - A Inútil Deambulação da Escrita», Prémio António Paulouro 2004, da cidade Fundão e «Os Girassóis», editado no passado mês de Maio. Tem por publicar o romance «Eterno Retorno», distinguido com o Prémio Afonso Lopes Vieira 2005, da cidade de Leiria, Prémio Orlando Gonçalves 2005, da Amadora, e Menção Honrosa no Prémio Alves Redol 2005, de Vila Franca de Xira.
Versátil e torrencial, Rui Herbon tem ainda por publicar o livro de contos «A Preto e Branco», que lhe valeu, em 2007, o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal.», e, na escrita para teatro, a peça «Masoch», Prémio Maria Matos 2007 de Dramaturgia, entregue também este ano.

ver, aqui, Entrevista a Rui Herbon

© Teresa Sá Couto

Entrevista a Rui Herbon

Editada noutros espaços ao longo dos últimos 3 anos, edito agora aqui a entrevista a Rui Herbon, feita em Agosto de 2005, que surgiu no ensejo do livro «Absinto - a inútil deambulação da escrita». Como curiosidade, refiro que ao combinar este encontro com o Rui, ele disse-me que costumava ser lacónico nas respostas que dava às perguntas que lhe eram postas. Respondi-lhe que eu não sabia fazer perguntas e, portanto, a entrevista afigurava-se um mistério. Penso que ambos nos aparelhámos para uma brevíssima conversa. Engano! De uma amena cavaqueira de horas que voaram, registei em texto o possível. Saiu assim:

Teresa Sá CoutoAbsinto: «Fada verde», «inteligência artificial», em alternativa e apologia de outro tipo de inteligência…
Rui Herbon - À inteligência “natural”. No fundo, para muitos artistas, quando não lhes vinha a inspiração – que não sei muito bem o que é – bebiam uns copos e parece que ela lhes surgia miraculosamente. Isso comigo não funciona (risos).
TSC - Uma alternativa à inteligência que impede a espontaneidade. Como «In vino veritas», no Banquete de Kierkegaard, onde os convivas só poderiam discursar depois de estarem sob o império do vinho e dizer coisas que de outra forma jamais diriam…
RH - Exacto. O Absinto seria algo libertador. As pessoas revelam-se à noite…durante o dia andam com o seu fato e gravata, com a sua máscara, à noite, às vezes, andam completamente enfrascadas e, se calhar, é como gostavam de passar a vida…(risos)

TSC - Morar sozinho, beber absinto e conhecer Emílio Montalban é a trilogia para a deambulação feita pelo narrador, um Eu, sem nome…
RH – Sim, é quase um pretexto para o livro todo. Está tudo interligado por esses fios. Além desse Eu há personagens que funcionam como fantasmas porque entram na narrativa e saem – como os figurantes do cinema ou teatro –, têm uma fala e desaparecem, sem se saber donde vieram nem para onde vão. A nossa vida é assim…as história da noite representam-no.
TSC - Emílio faz uma parelha de eleição com o Eu sem nome porque, e voltando ao absinto, a Emílio dá-lhe para falar, e ao Eu dá-lhe para escutar…
RH - É uma relação perfeita. E é verdade; o álcool tem efeitos diferentes nas pessoas. O Emílio falava verborreicamente, nas suas divagações. O outro, que passava o dia a divagar, à noite acalmava-se, deixava o outro falar, ouvia-o, abria a janela, ia ver a rapariga da frente…

TSC - A casa do Chiado é a âncora da deambulação, o espaço onde a escrita acontece. Viveste mesmo lá?
RH - Sim. Vivi lá seis meses. Mas o livro foi escrito depois. Não tenho muito jeito para inventar casas…no que estou a escrever agora estou a inventar, mas quase não se descreve a casa. Já morei em tantos sítios…agora estou menos movediço…conhecendo tantas casas diferentes é mais fácil utilizar esses cenários.

TSC - Sobre as personagens femininas…
RH – Ah, eu costumo ser mauzinho com as mulheres….
TSC - Disseste isso na Covilhã, mas não é essa a impressão com que fiquei neste livro…
RH - Este não tem muito, mas a frase «gosto de mulheres que falam senão começo a suspeitar que pensam»…!
TSC - Mas isso é tirares a frase do contexto. Repondo-a lá é uma observação ao serviço da dissecação das personagens, que continua no olhar crítico e irónico pela casa da mesma menina….
RH - Sim. Até porque ele estava a dizer aquilo a um tipo de pessoa específico, um destinatáro definido, à rapariga um bocado "oca", filha de boas famílias, com pretensões culturais, mas sem “grande coisa”…Essa frase fora desse contexto…caíam-me as feministas em cima.
TSC - É gente sombria que na noite anda à procura e encontra o efémero, aliás como o EU. No geral, até se pode ver como uma homenagem às mulheres….
RH - Pode ser. São possíveis várias leituras. E podes também ver este livro cruel para o Eu…com aqueles jogos ele expõe-se…Se fosse uma mulher a escrever, se calhar dizia o mesmo dele…

TSC – São sugestivos, os dois nomes que estão ligados à sexualidade…entre a Sophia, a portuguesa, e Rosário, a espanhola …(risos)
RH - A meio caminho está a virtude…
TSC - E a meio caminho estão as que não são efémeras: a vizinha…e a rapariga do Castelo.
RH – E essa parece ter “mais futuro”…pois reaparece no final, dando origem ao “eterno retorno”. Há também neste livro uma forte preocupação com o tempo…faço isso em todos os livros……como na história do tipo que é imortal e está ali a acabar esse seu tempo;…a rapariga rica dentro do tempo em que ele viveu na casa, mas se foi depois ou antes dele ter conhecido as espanholas…não se sabe…. O Tempo é caótico; não tenho a preocupação de dizer se foi antes ou depois…. São episódios. No fundo há meia dúzia de cenários, e a casa dele é quase a âncora de tudo.

TSC - A tua escrita é impressionista e, arrisco, com muitos traços surrealistas…
RH - é curioso dizeres isso, porque a única critica que surgiu a este livro terminava com «surrealistamente muito bom» Se calhar sim, mas não propositado…
TSC - Mas o caos é organizado propositadamente por numa escrita de interligações, até ao ínfimo pormenor…
RH – Trabalhei 10 anos em informática. Se calhar ao escrever tenho uma preocupação esquemática, sobre as relações que falas, o espírito de análise e de interligação, se calhar vem dessa área. Tenho uma preocupação terrível a rever. Não pode haver falhas. Há aí capítulos que podem existir fora do livro. Mas confesso que não me vejo a escrever contos. Só obras de fôlego. Tenho de concentrar-me, estar 2 meses ou 3 a esquematizar o que quero…demora a fermentar, mas depois disparo…
TSC - A importância da tal «escrita dentro», que falas no livro…
RH - Exacto. A pessoa vai trabalhando e há sempre qualquer coisinha que se aproveita… às vezes, a ponta da linha…e sai tudo por aí fora.

TSC - Uma Originalidade do livro «Absinto» é a relação que se estabelece entre a realidade e a ficção: o Eu desvela-se ao leitor, provocando um sistema de reconhecimentos, e a ficção entra na realidade. Um jogo assumido pelo narrador que até leva para a ficção um autor, um Rui Herbon (risos). Foi pensado ou saiu assim?
RH – Saiu e foi pensado. A maior parte dos escritores são pessoas que sempre escreveram, e eu não tive o Diário, não escrevia poemas. Até aos meus 29 anos fui leitor, e sou escritor há quatro, portanto, se calhar, eu ao escrever, muitas vezes farei ao contrário de muitos escritores, e muitas vezes será o meu lado ainda de leitor a prevalecer, e quando estabeleço esse Eu, digo-o claramente. Aliás há três Eus: quando ele diz que o Eu que escreve neste momento nem é o narrador, que supostamente é a tal ficção, nem o autor, que será a tal realidade, mas a sua máscara, uma terceira entidade; ou seja, um livro não é ficção nem realidade, há uma mancha no meio em que uma e outra se vão misturando. E se calhar o interessante é que uma pessoa chega a uma altura do livro, em que há uma mistura tal entre eles. O Eu sai muito pela tal sombra, a tal máscara.
TSC – O Eu não ter nome contribui para a identificação do leitor…
RH – Pois, pode ser o próprio leitor. Afinal não se sabe muito do Eu. Não se sabe o que ele faz. Escreve sobre tudo, mas não sabes o que faz durante o dia. À noite vai para os copos, durante o dia pode ter uma vida normal e o leitor pode encaixar aí. A personagem olha, vê, regista no seu bloco de notas. Essa é uma das minhas metodologias de escrita.
TSC – O estilo da deambulação, e da confissão…
RH – Sim…isso uso em todos. Normalmente, quando acabo um capítulo, vamos supor que tem 3 páginas, vou rever, e fica com seis…é que entretanto andei pelas ruas e acrescento confissões do Rui Herbon, nem é da máscara.
TSC – E a máscara é isso: esconde revelando, e voltamos ao absinto…
RH – Exactamente. Está aí a máscara para não se saber muito bem quem é…pode ser e pode não ser…E é uma desculpa: “ele se calhar estava a dizer aquilo porque estava com os copos” deixando a incerteza….e assim, “a gente desculpa-o”… (risos).

TSC - Tens a noção que este teu livro é uma fonte de compreensão da urbanidade e, pelo carácter analítico, pode ser uma consulta para estudiosos?
RH – Sim. É um livro urbano que procura as manifestações da cidade em si enquanto um todo, mas vai também a personagens individuais, aos seus comportamentos com a cidade, como se relacionam umas com as outras. Esse livro é uma homenagem à cidade, feita por alguém que interage com ela, que gosta de ouvir a gente dos bairros.
TSC - Com tantos autores a escreverem sobre a urbanidade, ela pode ser uma eterna fonte de inspiração ou tende a esgotar-se?
RH – Os campos têm todos o seu limite, e é curioso que o livro tenha sido escrito num meio rural, quando já era outro Eu… a forma foi já como de alguém que já está um pouco fora dessa urbanidade…
TSC – A distância e a memória têm o poder artístico de transformar…
RH - Transformar e escalperizar as coisas. É-se mais objectivo um pouco fora das coisas… Continuo a vir muito a Lisboa, mas provavelmente esse livro não seria o mesmo se o estivesse a escrever nessa casa, ou noutra em Lisboa, porque estaria dentro do cenário; seria um actor, mas quando se está fora é-se o coreógrafo, encenador. E esse mexe melhor os cordelinhos, do que se estivesse dentro; o Rui estaria dentro do cenário desse livro e ser-lhe-ia mais difícil estar cá fora a espreitar e ser o próprio Rui a rir-se das atitudes que o próprio tem dentro da urbanidade.

TSC - Falas de livros como objectos mágicos e de bolhas que se soltam deles.
RH – Eu já experimentei isso. Ao ler o livro «O Ano da Morte de Ricardo Reis», de Saramago, com o indivíduo a entrar no quarto de hotel, despertaram-se-me muitas ideias. Isso são as bolhas. Os bons livros são os que quantas mais vezes se lerem mais bolhas soltam.
TSC - Dizes que a escrita é um vício e que estás presente nela enquanto leitor. No entanto, também dizes que não lês.
RH – Praticamente leio por uma questão profissional; só leio, o que acho que me traz mais valias para o que escrevo. Depois, enquanto escrevo, não leio nem vou ao cinema. Tem tudo a ver com a tal “escrita interior”. Por exemplo: estou a ler um livro; uma casa desse livro leva-me para a casa do meu livro e quando dou por mim passei um capítulo todo e não sei o que li! Passa-se o mesmo com o cinema; uma qualquer cena faz-me sair do filme para entrar na minha história… de vez em quando acordo e não percebo nada do que estou a ver…

TSC - Dedicas todo o teu tempo à escrita. Dá-te para viver?
RH - Felizmente cada livro que escrevo dá-me um prémio; das vendas, dos direitos de autor, os valores são ridículos. O que me safa são os prémios…


nota: em cima, Rui Herbon fotografado por José Carlos Nascimento, imagem da contracapa do livro Absinto - a inútil deambulação da escrita

© Teresa Sá Couto

Em Lisboa com «Absinto»

Interpretar a grande cidade absorvendo-lhe o pulsar é a proposta do livro «Absinto – A Inútil Deambulação da Escrita» de Rui Herbon, editado em 2005 pela Parceria A. M. Pereira, Lisboa, e galardoado com o Prémio Literário António Paulouro 2004 da Cidade do Fundão.

Galvanizado por um narrador que deambula, o leitor recebe as palavras, como bolhas translúcidas, verdes da cor do absinto, com as quais constrói a sua própria sensação da urbanidade. Escritor e leitor seguem a par por 173 páginas ou ruas com muitos enigmas, imersos «em pensamentos como os mendigos abismados», atentos à cor, ao som, à luz, às sombras, às gentes, antes fechadas nos actos costumeiros de quem por tanto passar já não vê. E não há indiferença nesta Lisboa de Rui Herbon, desnudada por alguém que tem o amor no olhar, e a crítica no humor. Quem conhece Lisboa, com as palavras de Rui, redescobre-a. Quem não a conhece cria-a. Lisboa total, inteira, que amanhece e anoitece. Assim se faz a cidade que perdura. Assim se faz uma escrita de leitura indispensável.

A deambulação é feita por um narrador/escritor que não tem nome, nem é preciso tê-lo: pelas cumplicidades criadas, o leitor conhece-o desde sempre. O ponto de partida é um apartamento no Chiado, de dois pisos, ao qual o Eu «chegava por uma íngreme escadaria de degraus curtos», no topo de um prédio de esquina, junto das Escadinhas do Duque que «quase todos os dias subia ou descia, ou subia e descia». A dificuldade com que se «palmilha» a cidade, e a vertigem dos espaços onde se processa a deambulação, incorpora a alegoria da criação literária, e numa espantosa coesão, espraia-se ao longo de todo o romance nos mais diversos sinais: a história «O Fim» apresenta o imortal Al Gahel, o sobrevivente da Atlântida, o sangue comum a todos nós, que regressa a Lisboa para se suicidar. Para chegar ao seu quarto de sempre, no “Hotel Cervantes”, tem de subir «vinte e quatro degraus a direito, vinte e quatro multiplicados pela meia dúzia de vezes que ali se hospedara». Atestando a sua passagem pela vida, deixa um livro precioso, um Diário.

Deambulando, o Eu observa a cidade em cada instante munindo-se da técnica impressionista, com recurso às sinestesias, que permitem transmitir impressões e sugestões da realidade, e conferem ao todo grande plasticidade estética e prazer na leitura. Por este processo surgem os vagabundos, as estátuas, a gente buliçosa, os de olhar turvo e sem brilho, a massa de figuras e rostos, táxis alinhados, a velha taberna de esquina, suja e sebosa, o buzinar forte, etc. Deste manancial efémero destacam-se fios que ao irem ficando na percepção do sujeito, logo, na narrativa, vão-se fortalecendo: o caso de uma rapariga com quem se cruzou, no Castelo, com a qual «trocou por breves segundos um olhar frontal e cúmplice, que recordo até hoje»; a «misteriosa, insondável e desejada» que percorre toda a história, mas da qual se sabem apenas traços físicos e que usava sandálias de tiras.

Sendo Lisboa «uma cidade duplicada» – com duas placas para o mesmo local, uma com nome pomposo outra com o nome que todos conhecem –, também a noite mostra a outra face de Lisboa ou a duplicação de uma mesma parte: os noctívagos que na noite deambulam num processo de evasão da sua própria noite. É a noite que traz ao Eu o insólito Emílio Montalbán, que o “apresenta” à Sociedade internacional do Absinto. Um espanhol que andava sempre com uma pasta e que caminhava com um cão a seu lado, «nem atrás nem adiante», coxo da pata direita, um rafeiro «reles, surrado a fomes e abandonos, de pêlo caído, gasto e da cor das coisas que envelheceram, vestido com uma farpela preta e surrada, como a do dono».

O primeiro contacto táctil do Eu com Emílio é feito com uma vibrante imagem impressionista, mas também surrealista: «apertei-lhe a mão estendida, era engelhada e fria, as gelhas escorregavam entre os meus dedos». A noite é o lugar também das sombras humanas, do apelo sexual como procura de salvação, mas que encontra o “não ser”; é exemplo disso o “engate”com Sofia ou com Rosário. Outrossim, o olhar crítico sobre o “burguesismo fácil” está evidente em Sofia, a «Infanta da lavoura», com o seu carro vermelho descapotável. Ele observa-a, no quarto dela, deitado numa «cama com um colchão ortopédico com campos magnéticos e um edredão de penas às riscas, o papel de parede condizia, os tapetes condiziam, as cortinas condiziam e até o estofo de uma cadeira condizia». Mais do que o corpo dela, são estas observações que lhe ficam.

Construído de episódios ou quadros do real quotidiano, o enredo é vertiginoso com um caos que a escrita disciplina. O autor dispensa o ponto final e outras marcas da pontuação, mas não se pense que a desobediência às regras da prosódia faz com que esta escrita seja rúptil. Ao mesmo tempo que Lisboa se vai construindo, palavra a palavra, e a frase invadida pela vertigem sensorial, surge uma entidade inusitada: o leitor. A artimanha está na alternância entre a objectividade, verosímil para o leitor, e o recurso subtil à emoção, com que enreda o leitor que segue, quase hipnotizado, ao encontro do Eu que, por isso, passa a ser cada vez menos anónimo, pois passa a ser muitos, tantos quantos os leitores e os momentos de leitura. No momento perfeito, o leitor surge na intimidade da casa onde se escreve, através da vizinha da frente: «Ela chegou e invadiu tudo(…) apoderou-se de mim a ideia de que a palavra que estou a escrever é exactamente a mesma que ela lê nesse instante».

O leitor partilha a escrita, observando o momento em que o narrador, na sua secretária, preenche a página em branco, dá forma à sua escrita interior: «os olhos escorrendo desde a parede ou desde a janela para a folha, prolongando pensamentos e imagens.». Escritor e leitora permanecem naquele local, «a escrever e a ler em simultâneo, a horas certas, todos os dias». O livro termina com a voz da rapariga das sandálias pedindo um shot de absinto com groselha. Não sabemos mais nada. Um final aberto num livro de deambulação, onde é evidente “A inútil deambulação da escrita”: deambular não é chegar. É sempre partir.

Este livro é um contrato do autor com o leitor. Porque a imaginação é um movimento, e as palavras o impulso, este pacto é prolongável no tempo: será difícil ao leitor esquecer-se deste «Absinto».

ver aqui Entrevista a Rui Herbon

© Teresa Sá Couto

nota: texto elaborado em 2005

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

MORREU DINIS MACHADO

Definitivamente, há coisas do Diabo: no dia em que a Orgia Literária edita o meu texto sobre o magnífico e reeditado policial «Mão Direita do Diabo» de Dennis McShade (pseudónimo do nosso Dinis Machado) tenho de dizer que o autor, de 78 anos, acabou de falecer.

Os amigos já se preparavam para a despedida, mas ele, insurrecto por natureza, resolveu antecipar-se-lhes. "Pois!", diria Maynard. Morreu Dinis Machado, ele que, pela mão da sua escrita, tantos momentos de vida me deu a viver. Muito obrigada, Dinis. E acredito que tu saibas a desmesurada gratidão que os teus leitores têm para contigo.
Continuaremos a encontrar-nos sempre que eu te ler, e ler-te-ei enquanto viver!

nota: a fotografia de Dinis Machado, aqui reproduzida, foi colhida no site do escritor e jornalista Viriato Teles, onde se encontra uma magnífica entrevista ao Dinis, realizada em 2006.

Texto editado hoje, dia 03.10.2008 na Orgia Literária :

Mão Direita do Diabo, Dennis McShade

À necessidade de pôr o pão na mesa, junte-se o amargo e o doce da vida, uma mão cheia de livros lidos e a linguagem da rua. Envolva-se tudo com perícia e lance-se na eternidade, em três doses. A fome dos leitores será a levedura.

Após 40 anos e 1199 edições, o Mão Direita do Diabo de Dennis McShade, pseudónimo do nosso Dinis Machado, regressou às livrarias para nos relembrar que a genialidade é imperecível e mostrar a fome que temos destas leituras. E o primeiro título da saga policial McShade não vem só: projecto de reedição abraçado pela Assírio&Alvim, aquele título faz-se acompanhar pelos desejados, e há muito esgotados, Requiem para D. Quixote, a editar no final deste mês de Outubro, seguindo-se, nos primeiros meses de 2009, o Mulher e Arma com Guitarra Espanhola. Escritos por encomenda, num período de dificuldades económicas do autor, os três policiais, publicados entre 1967 e 1968, seriam o afinar da mão para o mítico e inigualável O Que diz Molero, editado dez anos depois, refere José Xavier Ezequiel no excelso posfácio de lavra dúctil, expedita, colorida e envolvente, onde se apresenta Dinis Machado – o homem, o seu tempo e a sua escrita – e com que bem se finaliza este Mão Direita do Diabo.

«Nado, criado e aculturado em filmes negros americanos no Bairro Alto», Dinis Machado «e o policial negro são unha e carne, quase como se tivessem andado na mesma escola, ou assentado praça juntos», diz José Xavier Ezequiel. E se a tríade policial McShade bebe o ensejo e o incentivo nos policiais negros de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, escritores americanos dos anos 30, Mão Direita do Diabo surpreende de imediato pela narrativa que, assente na personagem principal, cria um método e é fortalecida por ele: o disparo certo, no momento certo, sem desperdício de munições; que faz grande um género considerado menor; de uma leitura que, não permitindo paragens, nos sacode, a um mesmo tempo, com o espanto, a reflexão, o sorriso e até a gargalhada; com estreita ligação ao cinema e, fortíssima, à Banda Desenhada; com linguagem depurada, voluptuosa e desconcertantemente simples, capaz de chegar a todo o tipo de leitores com o mesmo arrebatamento inaudito, a revelar o carácter democrático da literatura, só possível por um escriba raro, tão raro que encobre o nome em Dennis McShade.

Por outro lado, se Dashiell Hammett criou a personagem Sam Spade, e Raymond Chandler criou Philip Marlowe, Dennis McShade surge com o admirável Peter Maynard, o assassino profissional de «obra limpa, completa, em profundidade e extensão», com nervos de aço e uma úlcera no estômago que é «uma broca», que cita Camus, lê Steinbeck, Dos Passos, Celine, e se apraz com o Kama Sutra, que ouve Bach, Beethoven e Mozart, e encontra serenidade nos braços de Olga.
É este «Califa» que se move em Nova Iorque, Las Vegas e Chicago, com a Beretta sempre oleada pronta para matar, de insuspeito sangue português, insuspeito para os censores da PIDE, pois o leitor atento não só suspeita, como o reconhece: na nostalgia de uma vida onde somos títeres, no olhar sobre as almas errantes nas ruas esconsas ou num bar sórdido de uma cidade da América, mas onde ressuma a nossa Lisboa e os bares onde se bebe a solidão.

Mão esquerda de Deus

«Matar pessoas é uma tarefa esgotante, principalmente pela longa espera e o ritual que envolve. É uma tarefa de perito, uma coisa que exige especialização nervosa», diz Maynard, incumbido de matar quatro homens. Escrupuloso e eticamente irrepreensível, Maynard traça científica e pormenorizadamente o plano, que a urdidura revela aos poucos, como manda a regra do género policial. Ao mesmo tempo, Maynard tem de traçar outro plano, com mais improviso, para escapar aos «assassinos confederados» do Sindicato, instituição de crime organizado que lhe emite uma ordem de execução por não lhe agradar a independência de Maynard que, transgressor, teima em trabalhar sozinho. É, aliás, este carácter solitário que estrutura a personagem e, por ela, se estrutura a narrativa, confirmando-se que a solidão medita e a meditação cria; de poucas falas, Maynard é reconhecível pelo «Pois», o seu cartão de visita, e nunca um «Pois» disse tanto na história da literatura: ele é cicio e clamor, assentimento, inevitabilidade, sarcasmo, sátira, desafio, ironia, sinceridade e simulação; ele responde, comenta e exerce o direito a não comentar.

Surpreendentemente, é a dificuldade de Maynard em construir uma conversa que origina diálogos magníficos; é, também, essa espécie de desprendimento, que lhe granjeia junto das mulheres um interesse inaudito, com a narrativa a apresentar quadros de sedução hilariantes; é, ainda, devido a esse carácter solitário, que se explora, brilhantemente, a psicologia das personagens, mas também a psicologia do leitor, enredado num jogo sensorial e intelectual, e hipnotizado pelo balancear das palavras.

Se o solitário Maynard fala pouco, todavia pensa muito, mesmo que pense «só na dose certa». Se a narração na primeira pessoa lhe permite revelar pensamentos, a narrativa segue, a par da urdidura policial, noutra grande frente: a dos monólogos maynardianos, em itálico, conversas de Maynard com Maynard, mergulhos de intimidade, onde ele se recrimina, sorri para si próprio, admoesta, invoca a lucidez, revê os planos e os métodos, faz conjecturas e fala com o leitor. É Maynard, «lobo acossado, que até foge de si próprio», a mostrar o seu barro, a sua desdita, a razão da úlcera no estômago que vai acalmando com copos de leite.
É, finalmente, a solidão deste «bicho nocturno, velha toupeira kafkiana», que lhe permite olhar para o ser humano com solidariedade, a solidariedade dos entravados, mesmo para aquele que cairá, pela força do dever, com a sua mão: «Olhámos um para o outro, quase com simpatia. Meu caro Eddie Piano, formiga humana, pobre diabo.».

Concluindo, alerte-se que é impossível não se venerar este homem do «dedo no gatilho», que com os sapatos de borracha se sente um gato e «com o silenciador na arma, um homem». Afinal, como o próprio texto aventa, Maynard é a «mão direita do Diabo» ou – e mais correctamente – a «mão esquerda de Deus», um seu filho preterido a quem coube ser o «emissário dos ódios intactos»?

Seja como for, «se os crimes de Maynard não são obras de arte, a arte é que fica a perder»; e fica o leitor que não tiver a felicidade imensa de se encontrar com estas leituras.

© Teresa Sá Couto