segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Maria num mapa de cicatrizes


«Maria estava apaixonada e, como na inclinação de um caminho, os seus seios e a sua boca inclinavam-na para o desejo. Certas coisas invisíveis vêem-se.». Maria ama, mas «não se prende o amor com pregos, ao coração. Daí a fragilidade». Maria vive, e a vida é composta de fendas. As fendas da vida também se vêem: gumes que traçam por dentro da pele um mapa de cicatrizes. Viajar pela vida de Maria é seguir pelas fendas até ao mais escuro da dor e incongruência humanas: o medo, e a loucura. Saberemos, também, que amor e ódio vibram em semelhante nervo excitado, pronto a soltar-se.

Maria Bloom é a personagem central da história «A Perna Esquerda de Paris» de Gonçalo M. Tavares, ele que, com as suas narrativas/ensaio, detém a arte de nos deslumbrar, inquietando-nos. Uma expressão única, com a palavra certa na frase perfeita. Assim se pontapeia o marasmo literário.

Maria, Bloom, o marido e Gregor amigo do casal são a trilogia central tragédia. Dito assim, porque a “construção do infortúnio humano” é feita com muitas outras personagens, chamadas para a ficção para darem a forma e a explicação das sombras internas. Outrossim, concorrem para a reflexão da complexidade humana os pensamentos de um narrador que divaga, porém certeiro na argumentação.

O caminho do caminheiro

A natureza humana é repleta de carências e de equilíbrios instáveis: «Maria olhou para a montanha. Com dois olhos, um fica sem montanha. Fechou o olho esquerdo. Sentiu-se equilibrada: como uma equação já resolvida na matemática. Abriu o olho esquerdo, desequilibrou-se. Caiu. Por que razão não fizeram ali duas montanhas?».

Compreender-se o homem na sua totalidade é tê-lo como sistema nas proposições: ser físico, biológico e antropossocial. Segundo Edgar Morin, esta é uma circularidade viciosa e virtuosa, em que as três componentes criam uma relação de dependência, antinomias e reciprocidades. Compreender o homem é ter a complexidade como base, e a complexidade como guia. É esta a base de Gonçalo M. Tavares. O homem é um sistema que deve ser aberto para ser conhecido, «toda a fechadura é um sinal de fracasso da humanidade.». E Maria mostra-nos como deve ser feita a reflexão do ser humano, complexo por natureza: «Maria tinha uma dicotomia. Tinha-a encontrado na rua, ontem, dentro da cabeça, ao fim da tarde. Era uma dicotomia simples que a maravilhava: O ser Natural/ ser Artificial Talvez por isso, Maria tivesse aulas de paradoxos, «duas vezes por semana, das seis às cinco e meia da tarde», às quais nunca chegava a tempo, «porque chegava sempre adiantada.».

«Os olhos também têm roupa íntima: e despem-se

O tempo vai passando pelas personagens durante cerca de 30 anos. Maria vai apreendendo o lodo da existência. O tempo passa por nós não para nos completar, mas para nos retirar fatias, para nos esburacar. Um dia, Gregor, numa aposta com Bloom, ganha-a e mata-o. E Maria vai perscrutando os poemas. Maria, que gostava de ouvir os pássaros e de ter sido escritora, vai perscrutando os poemas, e aprende que não se enxota a tragédia como se enxotam as moscas; na primeira noite ao lado de Gregor, vomita.

Os olhos nem sempre vêem a dor, o negrume do sofrimento. Gonçalo Tavares ensina-nos a vê-lo:

«O homem velho vestido de preto chora, na mão dois quilos de peras. Pego nelas, para o aliviar, mas não pego no resto porque não é possível: de que lado se segura na tristeza? A cinco centímetros de um homem que sofre tu podes nada sofrer, e o mundo e os homens são isto, o resto é estratégia e contratos de sobrevivência. O velho vestido de preto bebe um copo de água. A água a entrar num homem vestido de preto, a água a entrar numa roupa preta: como diluir o preto da roupa com um copo apenas? Muitos litros de água terá de beber o homem que sofre.»;

«Maria tinha pudor nos gestos longos, publicava nos seus dias apenas gestos miniatura (…) tinha amigos, mas os amigos não a tinham a ela. Vivia como um comboio. Tinha a sua linha, o seu percurso, os seus carris. Por vezes parava como os comboios param.».

Ao contrário da tragédia que nunca é estática, que avança sempre, e o autor mostra-nos isso. Nesta narrativa, como na existência mais interior do ser humano, mostra-se que «tudo o que ainda pode matar ou amar não está obsoleto». Mostra-se no final aberto, em jeito de movimento espiralado, que aqui se transcreve, dispensando-se os comentários:

«Maria Bloom tinha a cabeça curvada e o medo levantado. Gregor segurava um martelo e estava com ele parado de mais na mão. Quem tem assim a mão tão estática quer matar. Dois velhos, e o homem velho ainda tem ciúmes da mulher velha. Gregor acusa Maria de tentar seduzir outro homem. Maria Bloom chama louco a Gregor no único sítio onde tem coragem: na cabeça. Gregor segura um martelo e Maria viu esse homem matar outro homem e um animal, um burro. Foi há trinta anos, mas era este homem. E a mão dele continua parada.».

(to Artur)

© Teresa Sá Couto

1 comentário:

Luís Sampaio disse...

Soberbo o texto!

Soberbas as fotos!

Soberba a composição.

Estou sem outras palavras

LS