domingo, 25 de janeiro de 2009

Sousa Mendes – o justo desobediente

A 19 Julho de 1885, em Cabanas de Viriato, nascia Aristides de Sousa Mendes do Amaral Abranches, minutos depois do seu irmão gémeo César. Quatro anos depois nascia Salazar, em Santa Comba Dão. Todos estudaram na Universidade de Coimbra. Os irmãos gémeos seguiram para o mundo em carreira Diplomática. O último ficou por cá a dar tristeza à tristeza dos portugueses e a urdir ferreamente a Ditadura.

«César e Aristides de Sousa de Mendes, António de Oliveira Salazar, todos filhos da Beira Alta, como poderiam eles suspeitar de que iriam estar directamente envolvidos nos acontecimentos tumultuosos e trágicos que marcaram o século XX?».

Admirador do diplomata que, em desobediência justa a Salazar passou cerca de 30 mil vistos, sobretudo a judeus, salvando-os do Holocausto nazi, José-Alain Fralon, jornalista do Le Monde assina um livro admirável, arrebatador e imperdível: Aristides de Sousa Mendes – Um herói português surge para contar com frontalidade e assombro a história do homem que fica inscrito a ouro na História da humanidade.

Lançado em 1999, o livro foi reeditado em 2007, altura em que se sucediam em Portugal homenagens a Sousa Mendes e anunciado o projecto de um Centro de Estudos e Divulgação da vida e obra do cônsul, na cidade da Guarda. Refere o autor que o livro só foi possível com o contributo dos filhos de Sousa Mendes e do neto, António de Moncada que «levanta bem alto o pendão da memória do avô», mas também de muitos outros com valiosos e apaixonados testemunhos, inscritos neste livro em discurso directo.

Nove capítulos, Prólogo, Epílogo e Posfácio enformam esta obra magnética não só pelo conteúdo que desvela, outrossim como o expõe: um percurso total pela vida de Aristides, a família, os deveres, os direitos e as armadilhas da carreira, mostra-se Portugal, as actuações de Salazar, contextualiza-se o país no tempo e no espaço mundial, tudo num discurso vivo, com a objectividade do jornalismo, mas também com o timbre apaixonante de uma escrita literária que contagia e torna adicta a leitura, palavra a palavra até à última pagina. São incluídas algumas fotografias que registam diversas épocas da vida de Aristides. A abrir, um magnífico prólogo solta o fascínio da leitura. Confira-se:

Estavam à espera.
No calor daquele Verão bordalês, esperam milhares deles.
Alguns tinham partido de Paris na véspera. Outros, os que vinham de Riga, de Varsóvia ou de Berlim, havia semanas, longas como meses, que tinham começado a trilhar os caminhos do êxodo. Todos fugiam dos bárbaros, cuja sombra se estava a projectar sobre toda a Europa. Chamavam-lhes refugiados. Mas agora sabemos que eles tinham sido pura e simplesmente condenados à morte.
Para salvar a vida, cada um tinha apenas de conseguir uma simples assinatura no passaporte.
Mas o único homem que lhes podia apor essa assinatura não estava autorizado a fazê-lo. Porque eles eram judeus, ou polacos, ou apátridas. Ou de “nacionalidade indefinida”. Ou, para usar o termo exacto, indesejáveis.
Quantos homens se teriam limitado a lavar as mãos como Pilatos e a obedecer aos superiores? Não é da minha responsabilidade!
Ele, não.
Chamava-se Aristides de Sousa Mendes.

«Vou salvá-los todos» – a voz da consciência

Conta-se minuciosamente a vertiginosa corrida contra o tempo de Sousa Mendes para assinar os vistos e desobedecer à circular 14 que exigia, «para quase todas os casos, uma autorização, por escrito, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros». A 16 de Junho de 1940, conta o filho Pedro Nuno, Aristides levantou-se sereno e decidido para cumprir os 3 famosos loucos dias de trabalho: «A partir de agora, vou dar vistos a toda a gente, deixou de haver nacionalidades, raças, religiões», terá dito e explicado que fora a «sua consciência ou a de Deus, que lhe ditara a conduta a seguir: «Não posso consentir que todas estas pessoas morram. Muitas delas são judias e a nossa constituição diz claramente que nem a religião, nem as ideias políticas de um estrangeiro podem servir de pretexto para lhe recusar a entrada em Portugal».

Para que o processo fosse mais rápido, «instalou-se uma verdadeira cadeia de montagem»: o rabino Kruger – que se tornaria grande amigo de Aristides – recolhia os passaportes nas filas intermináveis de gente e, «uma vez colocados em cima da secretária, Aristides assinava e josé Seabra apunha o carimbo exigido». Mostra-se como a família terá tentado demover o cônsul, em nome da segurança de todos, até acabar, também ela por ser contaminada pela hercúlea tarefa humanitária e ajudar com dedicação. Esgotado pelo trabalho ininterrupto, Aristides sintetizava progressivamente a assinatura, passando a assinar apenas «Mendes» e «tinha renunciado à tarefa de inscrever no grande registo o nome de todas as pessoas a quem eram concedidos os vistos. “Os vistos foram concedidos fora das horas de expediente”, escreveu mais tarde, para se defender. No dia anterior, já tinha decidido não cobrar as taxas de registo dos vistos. Na guerra não se olha a meios».

Refere-se o episódio do dia 25 de Junho, na fronteira franco-espanhola, quando o cônsul voltava a Portugal: «mandou os refugiados que o rodeavam segurem-no. Conduzia o carro devagar. O estranho cortejo chegou a um pequeno posto fronteiriço, cujos soldados ficaram a olhar para eles, embasbacados. Felizmente não dispunham de telefone, nem tinham ainda recebido as novas instruções de Madrid acerca do encerramento das fronteiras. Sousa Mendes, do alto da sua imponência – e continuava a tê-la, apesar das roupas amarfanhadas, dos sapatos cheios de pó, do rosto cansado, dos cabelos despenteados – disse aos espanhóis: “Sou o cônsul de Portugal, estas pessoas viajam comigo, todas tem os passaportes em boa e devida forma, como podem verificar; sejam então simpáticos e deixem-nos passar”. O incrível aconteceu: passaram.».

Aristides escolhera o seu caminho e a lei de Salazar – Manda quem pode, obedece quem deve – seria obviamente cumprida: Salazar era o que “não perdoava” e Aristides foi exonerado aos cinquenta anos. Sem dinheiro e com uma vasta família para alimentar, morreria na miséria, a 3 de Abril de 1954, vitimado por uma congestão cerebral e uma pneumonia, no local onde nasceu, com ecos da frase de Fernando Pessoa: «Dói-me a cabeça e o universo».

Aristides de Sousa Mendes – Um Herói Português, José-Alain Fralon; Editorial Presença, 2ª edição, Julho 2007

© Teresa Sá Couto

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